domingo, 26 de fevereiro de 2017

O novo livro de Luiz Alberto Moniz Bandeira e sua obra

 Por Regina Gadelha

Nesses difíceis tempos em que as democracias parecem estar ameaçadas, o novo livro de Moniz Bandeira (A Desordem Mundial. 1.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 644 p.) esclarece e nos permite compreender a dialética das relações geopolíticas entre os fatos econômicos, políticos e sociais que marcam os destinos dos países e populações, as relações internacionais que interferem em suas histórias, ações políticas e externas possíveis, responsáveis pela preservação da independência e liberdade dos povos.

Se o conjunto da obra deste grande autor não oferece todas as respostas (nenhuma obra o faz), suscita reflexões e esclarecimentos sobre o intrincado jogo geopolítico que permeia os interesses das relações de dominação existentes por detrás dos conflitos internacionais. O livro vem, pois, preencher um vazio, desvelando os espectros da dominação que ameaça as periferias do sistema.

Como os títulos de suas obras anteriores, A Desordem Mundial traz importante subtítulo ilustrativo da importância da obra: O espectro da total dominação: Guerras por procuração, terror, caos e catástrofes humanas. Embasado em ampla documentação acerca dos fatos contemporâneos apoiados em documentos oficiais, as 643 páginas do livro devem ser vistas como parte da trilogia constituída por dois outros trabalhos anteriormente já publicados – Formação do Império Americano (2005) e A Segunda Guerra Fria (2013), em que o autor traça uma visão panorâmica do ultra-imperialismo global das potências mundiais.

Sobretudo em A Segunda Guerra Fria, demonstra a penetração dos Estados Unidos nessa vasta região e que, desde os anos 1990, utilizam a OTAN para reabrir seus negócios do petróleo, primeiro no Iraque e, logo, no Afeganistão, de onde se expandiu para um permanente estado de guerra, e o terrorismo, por toda a vasta região eurasiana, do Oriente Médio à África do Norte.

De fato, Moniz Bandeira não só descreve como analisa com profundidade, ao longo desta trilogia, os atores estratégicos que dão as cartas no cenário mundial. Estamos, porém, longe de constatar nos países ocidentais a presença de uma ideologia una e totalizadora, necessária à chamada “dominação total”, de que nos fala o autor de a Desordem Mundial, pois sob os graves aspectos que determinam as guerras e conflitos existem poderosas coligações de forças, o que impedem vislumbrar um final para este longo conflito militar e político, ideologizado e impregnado de religiosidade, que se arrastam desde meados do século XX. Portanto, estamos muito longe da “Pax mundial”.

O autor de A Desordem Mundial dedica dez dos vinte e quatro capítulos de seu livro para analisar a crise e a debacle da Ucrânia, país dividido entre as forças centrífugas ocidentais e a Rússia, para analisar o ressurgimento da Rússia como novo importante player neste cenário geopolítico global. Por seu lado, o Ocidente (a Europa burguesa triunfante desde o século XIX) tem sua liga maior coordenada pelos interesses econômicos globais dos setores financeiros e empresariais mundializados, o que explica a relevância da enorme (e imoral) concentração de renda e os valores demonstrados no capítulo segundo. “Free World/Free Market versus Curtain Iron”, como salienta o autor, com o crescimento da desigualdade social em todo o globo.

Estes fatos fazem submergir o imaginário do ideário democrático, transformando os Estados Unidos em uma “democracia militar”, conforme já alertara o embaixador Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas, em carta de 02/12/1952, escrita desde Washington (p.53-4). De acordo com Moniz Bandeira, é esta a ideologia da hegemonia militar que dá liga ao povo americano, permitindo sua maior manipulação ideológica, sobretudo após os ataques e a destruição das famosas torres gêmeas de Nova York, em 11 de Setembro de 2001. Cenário que permitiu George Bush Filho iniciar as práticas de novo “fascismo branco de poder” ao transigir profundamente a Constituição americana através do decreto do USA Patriot Act e a levar ao extremo a aplicação do poder federal no monitoramento eletrônico dos cidadãos.

De fato, a aprovação do Military Commissions Act (MCA) ratificado pelo Senado, em 9/09/2006, completa o “espectro da dominação”, com a ab-rogação do direito ao habeas corpus de qualquer cidadão norte-americano detido como “combatente ilegal”, designação utilizada para os prisioneiros capturados na Guerra do Afeganistão que foram levados para o campo de concentração da base de Guantánamo (Cuba), impedidos de recorrer às Convenções de Genebra. O mesmo Decreto outorga, ainda, poder ao presidente americano para deter indefinitivamente qualquer cidadão americano ou estrangeiro nos Estados Unidos ou no exterior, que demonstre apoio a hostilidades antiamericanas. (p.76). Estes decretos instrumentalizam os atos militares e as práticas de torturas praticadas por militares e agentes da CIA em todos os países do mundo, desde a Guerra do Golfo (1990-1991) liderada pelo então Presidente George Bush, seu pai, em coligação com o Reino Unido.

A Guerra do Golfo, em 1991, contra Sadam Hussein, porém, apenas abriria a “Caixa de Pandora”, iniciando um conflito de dimensões ainda não precisas e que se estende até os dias atuais.  Este cenário de guerras se dá fora da Europa – os países do bloco da União Europeia vinculados à OTAN e que têm como epicentro a Alemanha, importante player no jogo de poder das nações, fator não explorado por Moniz.

Parte importante do livro é a interpretação do que chama de “ressurgimento da Rússia”, país que fora provisoriamente abatido e afastado do jogo geopolítico no início da década de 1990, com o desmoronamento da União Soviética e o desmembramento de seu bloco. Este fator fora agravado pela corrupta privatização dos bens do Estado durante a administração do presidente Boris Yeltsin. Governando a Rússia desde a renúncia de Yeltsin, em 1999, Vladimir Putin foi eleito sucessivamente Presidente, com breve interrupção apenas de 2008-2011. Atualmente encontra-se em seu terceiro mandato iniciado desde 2012, com término apenas em 2018.

Moniz Bandeira mostra como este ex-membro da KGB soube retirar o país da crise política e econômica em que se encontrava desde a década de noventa e novamente colocar a Rússia como importante player no cenário das nações mundiais. Neste jogo de poder, cada player importa. Também a China emerge, representado por mais de 1 bilhão e 400 milhões de chineses, ao entrar fortalecida na competição econômica, reestruturando todo o cenário mundial e contribuindo para a destruição de empregos, salários e capitais. Dentro deste vasto panorama, a África (exceto África do Sul) encontra-se excluída e nossa pequena América do Sul submersa em profunda crise, da qual grande responsabilidade se dá através do agravamento do contexto econômico e político brasileiro atual.

Como nos demais trabalhos do autor, a Desordem Mundial abrange um longo período de tempo. O autor começa a análise traçando um histórico do nazi fascismo em sua fase de expansão, influindo não só sobre os países da península ibérica (as longas ditaduras de Franco, Espanha, e de Salazar, Portugal) como nas Américas. Demonstra a força da transformação exemplar do fenômeno nazifascista na ideia da “mutazione dello stato”, ou seja, para a transformação de um Estado livre em um Estado tirano, em nome da liberdade, e sua influência sobre os big businessmen americanos contrários às políticas do New Deal de Franklin D. Roosevelt, e que perdura até os sombrios dias atuais (capítulos 5-7). Nos capítulos seguintes, a obra dá sequência às reflexões acerca dos conflitos na Ucrânia, Síria e Oriente Médio e denuncia a influência dos grandes trustes monopolistas em rede, manipulando e dominando governos e economias dos estados nacionais, desde o século XIX até os dias atuais. Trata-se do chamado “shadow-banking sector”, forma avançada dos “Corporate Caesars”, “industrial Caesars” e “comercial Caesars” do século XX, como os denomina o autor, ao mesmo tempo em que a corrupção se tornaria inevitavelmente “inerente à república presidencialista inspirada no modelo americano”, modificando os fundamentos das democracias dos estados modernos e seu objetivo. “Legalized corruption, o que significa que os ricos, bilionários, com maiores recursos, podiam subornar os políticos, e era o que geralmente faziam. […] as firmas de lobbying, que se concentram na K Street, em Nova York, sempre puderam afetar a legislação com dinheiro dado aos políticos e por isso os que possuem recursos financeiros têm maior impacto no sistema político do que aqueles que não o possuem” (p.57).

Como parte desta análise sobre o desvelamento das hodiernas democracias, constata que o sistema capitalista conduziu o mundo a uma gigantesca concentração de renda, cuja desigualdade atingiu, em 2013, “o nível mais elevado desde 1928: 1.645 homens e mulheres controlavam maciça parte do acervo financeiro global, um montante de US$ 6,5 trilhões. Desses 1.645 bilionários, afirma, 492 viviam nos Estados Unidos, cujo PIB era da ordem de US$ 16,72 trilhões (2013 est.), e controlavam mais de US$ 2 trilhões”. (p.55-6).

É que a desigualdade recrudesceu a partir dos anos 1980, passando para 6 a 1: “A partir de 1982 […] as famílias mais ricas, 1% da população [mundial] que em 1982 recebiam 10,8% de todos os rendimentos antes da incidência de impostos (pretax), e 90%, com 64,7%, passaram a receber 22,5%, em 2012, enquanto a participação das demais caiu de 90% para 49%”. (p.55). Em decorrência, as ações da “free enterprise santificada engendrou, inevitavelmente, a acumulação de riqueza e a desigualdade estrutural de poder, assim como o free Market, que os presidentes dos Estados Unidos tanto se empenharam em impor a outros países, mormente àqueles com níveis salariais mais baixos e ricos e matérias primas”. (p.55-6).
Denuncia o recrudescimento da segunda “guerra  fria” em que Estados Unidos e seus aliados – países liderados por um cartel controlado por apenas oito famílias[1], das quais quatro sitiadas nos Estados Unidos e que manipulam não só as políticas do FED e do FMI, como influenciam as atividades e operações da OTAN, da Special Operations Forces/Navy Seal Team 6 à CIA, incluindo os ataques de drones empregados nas guerras assimétricas sobre alvos civis e militares, no Afeganistão, na Líbia, no Iraque, na Somália, no Iêmen, Líbia, Síria. Estas ações, afirma Moniz Bandeira, transcenderam todos os níveis das operações políticas, táticas e estratégicas até então conhecidas, graças à rápida expansão da tecnologia, e provocaram o advento do extremismo islâmico, pois “a difusão do poder tornava muito mais duro o avanço da causa regional e governança global”, conforme reconheceu Strobe Talbott, ex-secretário de Estado Assistente de Bill Clinton. (p.146). O autor conclui que tão pouco o Presidente Barack Obama teve êxito no combate ao terrorismo, pois os ataques dos jihadistas recrudesceram no Iraque, Afeganistão, Paquistão, Nigéria. De mesmo, os atentados terroristas em todo o mundo. Portanto sob vários aspectos, afirma, a política exterior de Obama foi desastrosa: “Os bombardeios da OTAN, por ele autorizados, devastaram a Líbia, uma das mais ricas nações da África” e o país “precipitou-se no caos econômico e político” após a queda do regime de Muammar Gaddafi.

A exemplo da política desenvolvida no Afeganistão e Oriente Médio, o golpe político da Ucrânia também foi articulado pela secretária assistente de Estado americano, Victoria Nuland, e pelo embaixador ucraniano de Kiev, Geoffrey R. Pyatt, resultando em outro fiasco, pois o presidente Putin reincorporou a Crimeia, assegurando a importante base naval de Sebastopol, no mar Negro, à Rússia. Hoje, demonstra o autor, a Ucrânia é um país falido, com sua moeda enormemente desvalorizada perante o dólar desde 2014 e uma dívida externa superior a 94,4% do seu PIB (2015), com queda prevista pelo FMI para mais de 12%!
A intervenção na Síria também serviu para evidenciar, por sua vez, o enorme e avançado poderio militar da Rússia e para restabelecer o prestígio qualitativo deste país no game da geopolítica mundial. (p.488). A Turquia, por outros motivos, também volta a regredir em termos de democracia, tanto sob o aspecto cultural como social. Portanto, se agrava a crise em todo o Oriente Médio. O balanço desta era, conforme também detalhado em A Segunda Guerra Fria 1.ed. 2013), mostra o triunfo do ultra-imperialismo, tendo por base o cartel das potências industriais ademais do incomparável poderio militar e financeiro dos Estados Unidos e seus aliados europeus da OTAN. Por outro lado, a política do governo Obama deixa um rastro sangrento de milhões de mortos e de exilados sem pátria, igual ou maior do que o legado deixado por seus antecessores. Ao finalizar A Desordem Mundial relembra a frase do historiador e filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936), para quem “não há ideais, mas somente fatos, nem verdades, mas somente fatos, não há razão nem honestidade, nem equidade etc., mas somente fatos”. (p.513). E são os fatos que explicam a história.
* REGINA MARIA A. F. GADELHA é Professora Titular do Departamento de Economia-FEA-PUC/SP; Coordenadora do NACI – Núcleo de Análise de Conjuntura Internacional da PUC/SP; Vice Coordenadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia Política – PUC/SP; E-mail: rgadelha@pucsp.br. Publicado originalmente em Revista Pesquisa & Debate. São Paulo. Vol. 27. Número 2 (50). Dez 2016.

[1] Trata-se do cartel controlado pelo Bank of America, JPMorgan Chase, Citigroup e Wells Fargo, entrelaçados com as companhias de petróleo Exxon Mobil, Royal Dutch/Shell, British Petroleum e Chevron Texaco, em conjunto com Deutsche Bank, BNP, Barclays e outros colossos financeiros da Europa. Estes bancos e empresas são de comando de apenas oito famílias: Goldman Sachs; Rockefeller; Lehman e Kuhn Loeb, dos Estados Unidos; Rothschild, de Paris e Londres; Warburg, de Hamburgo; Lazard, de Paris; e Israel Moses Seif, de Roma. (Id. p.140).

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Dois livros abordam Memória e Patrimônio



Nos belíssimos capítulos que escreveu para o volume 1 da Enciclopédia Einaudi dedicado à Memória, Jacques le Goff conclui que “a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção”.

E insiste na necessidade da democratização da memória social, afirmando que cabe aos profissionais científicos da memória “fazer da luta pela democratização da memória social, um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica”.

O capítulo sobre Memória se encerra com um parágrafo lapidar: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens”.

No capítulo Documento/Monumento, esse mesmo autor nos diz que “A palavra latina monumentum remete para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O monumentum é um sinal do passado [...] Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte”.

Essas falas de Le Goff me vieram à mente ao examinar dois livros recentes, da mesma autora, filósofa e professora, com quem tive oportunidade de trabalhar: Maria de Lourdes Caldas Gouveia.

Ela vem desenvolvendo um belo trabalho intitulado Matéria da Memória: a cidade e seus símbolos. E tenho dois volumes já publicados, cujas capas mostro a seguir.











“O cemitério do Bonfim como símbolo da cidade” e “A praça da Liberdade como símbolo da cidade”, nos revelam, em linguagem dinâmica e apaixonante o que esses dois monumentos de Belo Horizonte significam para a democratização da memória social de que fala Le Goff.

São dois belíssimos livros, de editoração excelente, com amplas e portentosas imagens desses dois núcleos patrimoniais que se destacam pela relevância histórica, simbólica, social e cultural da capital mineira.

Nem preciso dizer que recomendo a todos a leitura dos dois volumes. E não apenas a leitura, mas, também, que deixem seus olhos brilhar intensamente com as fotografias que os ilustram.

A publicação ficou a cargo da ONG Akala (www.akala.org.br)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Afonso Arinos e “Pelo Sertão”





Antônio de Paiva Moura

O livro “Pelo Sertão” foi publicado pela primeira vez, no Rio de Janeiro, pela Laemmert, em 1888. Reúne doze contos escritos quando o autor tinha de 19 a 26 anos de idade.


            O autor – Afonso Arinos de Mello Franco era filho do senador Virgílio de Mello Franco e Dona Anna de Mello Francos. Nasceu em Paracatu MG, no dia 1º de maio de 1868 e faleceu em Barcelona, em 19 de fevereiro de 1916.  Completou estudo primário em Vila Boa do Anhanguera, antiga capital de Goiás. Em 1881 foi para São João Del Rei, onde fez o curso secundário, no Colégio Cônego Machado. Em 1889 concluiu o curso de Direito em São Paulo. Em seguida volta a morar em Outro Preto, onde passa a lecionar no Liceu Mineiro, viajar e escrever. Em 1881 escreveu o conto “Joaquim Mironga” e “Assombramento”, cujos personagens, como o autor, estão sempre em viagem. Já no início do século XX escreve a bela página “Buriti Perdido” e deixa inédito o romance historio do século XVII e “Ouro, ouro”. (OLIVEIRA MELLO, 1994) 

            Pedro Barqueiro – Quase chegando a Pedra de Maria da Cruz, Norte de Minas, o tropeiro Flor começou a contar a seu patrão, um caso de valentia, habilidade e esperteza. Seu antigo patrão o incumbe de prender um perigoso foragido de nome Pedro Barqueiro. Começa assim: Naquele tempo eu era franzininho, maneiro de corpo, ligeiro de braços e de pernas. Meu patrão tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponto de dedo. Pedro Barqueiro tinha fama de ser muito valente. Continuando o Flor: Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa tingida de barro preto: atravessado à cinta um ferro comprido, afiado, alumiando sempre; maior que um facão, menor que uma espada. Tratava-se de negro fugido dos lados do Carinhanha, que havia escapado a um cerco de tropa regular e não havia quem o pegasse. Flor e seu companheiro Pascoal conseguiram descobrir que Pedro Barqueiro morava sozinho em um rancho à beira do São Francisco.  Os dois conseguiram aproximar-se dele e depois de muito custo, passá-lo a preso e levá-lo à presença do patrão. Enquanto os moradores do lugar comentavam a proeza de Flor e Pascoal, Pedro Barqueiro conseguiu desabar-se das cordas e desapareceu. Segundo a crença, Pedro Barqueiro contava com proteção sobrenatural. O personagem narrador ficou frustrado porque desejava que sua vitória impressionasse Emília, com quem pretendia se casar. 

            Joaquim Mironga  - Com esse título Affonso Arinos conta a história de vaqueiro que desde a infância acompanhava um grande e velho fazendeiro. Joaquim Mironga relata que viu o patrão novo nascer e crescer na fazenda. Mironga era excelente cavaleiro: andava armado com ferrão e clavinote.  Em 1842, por ocasião da revolta liberal, as forças dos potentados regionais entraram em conflitos. Moronga, juntamente com o patrão novo fez tudo para dar fuga ao patrão velho na travessia do Rio São Francisco. De volta da missão, em confronto com uma hoste adversária, o patrão novo foi ferido e faleceu. Muito significativa a forma como Arinos revela a fidelidade de Mironga ao velho e ao novo patrão. Fica clara a identidade dos personagens com senhores, cavaleiros e vassalos medievais. 

            Buriti Perdido – Trata-se de uma crônica sobre a devastação dos sertões mineiros e goianos. A redação é em forma de prosa, porém com estética de poesia. Predomina a elegância na colocação das palavras, o que revela alta erudição do autor. No final do século XIX havia um surto migratório em busca de novas terras para lavoura e criação de gado. Uma palmeira buriti escapou-se dos golpes dos machados e sobreviveu solitária, sentindo todos os brados da natureza em seu entorno. Setenta anos antes do surgimento de Brasília no Planalto Central, Arinos reserva na cidade um lugar para o buriti perdido. Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua, talvez uma grande cidade se levante na campina, a soca do buriti perdido. Possivelmente, na leitura dessa bela oração de Arinos, o construtor de Brasília deu à residência oficial do governador do Distrito Federal o nome de “Palácio Buriti”. 

            Como diz Amoroso Lima (1968) “Pelos Sertões” é uma obra de absoluta sintonização com o autor; de investigação pessoal completa sobre o ambiente, os costumes, a paisagem e os personagens dos contos nele contidos. Era a realidade que o interessava, era a consideração do mundo exterior que o prendia, mas era o sonho que se continha no âmago dessa verossimilhança. Foi por isso, que além de animador de tipos reais e de diálogos flagrantes de verdade, um descritivo, um apaixonado da natureza. 

            Na trilha aberta por Bernardo Guimarães veio Afonso Arinos que com ele se identifica no conhecimento dos sertões do Triângulo Mineiro e de Goiás. Ambos tinham o gosto por viagens e por ouvir viajantes nas pousadas. Os contos “Assombramento” de Arinos e “A filha do fazendeiro” de Bernardo Guimarães, além da identidade de enredo, ambos foram colhidos em pousos de tropeiros. Na sucessão de Afonso Arinos veio João Guimarães Rosa, apreciador das viagens a cavalo e do convívio com os sertanejos. Como Arinos, Rosa não emprega em sua escrita o linguajar caipira ou roceiro, com acentuada corrupção da gramática e do léxico português.

Referências
LIMA, Alceu Amoroso. Verdade e idealismo em Afonso Arinos.  Minas Gerais (Suplemento Literário) Belo Horizonte, 27 abril de 1968.

OLIVEIRA MELLO, Antônio de. De volta ao sertão: Afonso Arinos e o regionalismo brasileiro. Paracatu: Buriti, 1994.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Um escritor universal e atual para o Brasil - Ortega y Gasset

Recebi hoje uma resenha de um dos livros de Ortega y Gasset. Para os leitores mais novos, que talvez nunca tenham ouvido falar dele, apresento:

José Ortega y Gasset nasceu em Madri, em 9 de maio de 1883. Estudou em Madrid, mas foi enviado logo cedo, pela família, para cursar o bacharelado em um colégio dos jesuítas de Málaga..
Graduou-se e doutorou-se em Filosofia na Universidade Central de Madri, em 1904
Teve vasta obra publicada, reunindo palestras e artigos diversos. Seus mais famosos livros são "A rebelião das massas" e "Meditaciones del Quijote". A resenha que nosso colaborador enviou é do livro "A rebelião das massas".





A mediocridade do homem-massa

Antônio de Paiva Moura

            Há no mundo contemporâneo, grandes e vários tipos de manifestações populares, que ocupam espaços públicos levando inscrições e pronunciamentos em coro. A convocação de grupos e pessoas com os mesmos ideais tornou-se fácil com o aparecimento da Internet e da telefonia móvel. Um exemplo desses tipos de mobilizações foram os chamados “rolezinhos”, reuniões de jovens em shopping Center, ocorridos em 2014, nas grandes cidades brasileiras. Os principais tipos de manifestações são de cunho político, religioso, esportivo e social. 

            O que me motivou a escrever esta resenha foi o comportamento do atual presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte. Em 2016 ele disse que matava com as próprias mãos pessoas suspeitas de crime. Com a ajuda e apoio de populares, mandou matar cerca de cinco mil pessoas, envolvidas em tráfico e consumo de drogas, desde o início de seu mandato como presidente. 

            Para Ortega Y Gasset o homem-massa é uma forma de ver o mundo. Ele apresenta o século 20 como a era do homem-massa, isto é, previamente esvaziado de sua própria história, sem entranha de passado e, desta forma, dócil com seus exploradores, com seus novos opressores. O homem-massa só tem desejo; pensa que só tem direito e não acha que tem obrigações: É um sujeito sem obrigações de nobreza. Ortega y Gasset só viveu até a primeira metade do século XX, mas foi capaz de antever o que seria a atualidade e o grau de mediocridade a que chegou o homem-massa. Este só participa de manifestações em causa própria, movido a estímulos externos, como bonecão de bloco carnavalesco. Recebe estímulos à prática de atos violentos e expressões de ódio e preconceitos.  

            O homem-massa fustiga seus apetites que, em princípio, podem crescer indefinidamente, não se preocupando com nada além de seu bem-estar. Para satisfazer seus apetites o indivíduo contemporâneo passa por cima de qualquer valor ou limite, como a carta deixada por Sidnei Ramis de Araújo, ao matar onze familiares e se suicidar, na noite de 31 de dezembro de 2016, em Campinas. Ele banaliza a morte dos outros e diz que morria por justiça. Considera que a ex-mulher era uma vadia protegida pela justiça. Diz que a ex-presidente Dilma, também é uma vadia por ter sancionado a Lei Maria da Penha. Percebe-se nas palavras de Sidnei a intolerância aos limites. 

            O homem-massa se considera no direito de ser vulgar. Não dá razão aos outros, mas se mostra decidido a dar sua opinião a todo instante e em qualquer lugar que se encontre. Impossibilitado de formar idéias concretas e razoáveis, apela para a violência como forma de solução. É comum ouvir-se pronunciamentos como: “Se matássemos todos os gays, o problema da AIDS estaria resolvido”. Sobre o controle da natalidade propõe esterilizar coercitivamente todas as mulheres pobres. Bruno Júlio, filho do deputado Cabo Júlio (MG), foi nomeado pelo presidente Temer ao cargo de secretário nacional da juventude, com um salário mensal de R$ 14 mil reais, mesmo sabendo que ele era acusado de assédio sexual a uma jovem e de ter tentado matar sua ex-mulher, porque esta não queria mais o relacionamento. Em janeiro de 2017, no momento em que ocorriam as chacinas nas penitenciárias do Norte do Brasil, o secretário Bruno Júlio disse: “Tinha era que matar mais; fazer uma chacina por semana”. Continuando a conversa com jornalista de “O Globo” ele arremata: “Eu sou meio coxinha sobre isso, pois sou filho de policial”. É, portanto, a autêntica expressão da vulgaridade. 

            O homem massa jamais teria apelado para qualquer coisa fora dele, se a circunstância não o tivesse forçado violentamente a isso.  A massa é confusa em seus propósitos e não sabe agir criticamente, dependendo sempre de autoridades externas que lhe dê diretrizes, movidas pelo sentimento de ódio; pela maledicência; calúnias e falsidades. Para silenciar as vozes que contestam as asneiras do homem-massa este reivindica a volta da ditadura. 

            O homem-massa não conhece a civilização em que nasceu e que nela vive. Com a ignorância, falta de conhecimento histórico e o baixo nível cultural do cidadão contemporâneo, ele não está à altura de resolver os problemas atuais. Os trabalhadores estão voltando ao status de escravo; as conquistas das mulheres estão sendo rechaçadas com assassinatos e agressões dolorosas; as penitenciárias não comportam tamanho volume de prisioneiros que se digladiam entre si; as crianças estão sendo educadas para serem autômatos, individualistas e narcisistas. Tudo isso redunda em destruição da civilização. 

           
Referência
ORTEGA Y GASSET, José. (1883-1955). A rebelião das massas. [1930]. Tradução de Marylene Pinto Michel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.